Há um tratamento contábil apropriado para o Crédito Acumulado de ICMS?

Há um tratamento contábil apropriado para o Crédito Acumulado de ICMS?

Sílvio Hiroshi Nakao

 

No III Workshop de Contabilidade e Tributação, realizado na FEA-RP/USP nos dias 19 e 20 de outubro de 2017, tive a satisfação de poder debater sobre Crédito Acumulado de ICMS com Manoel de Almeida Henrique, ex-Diretor Adjunto da Administração Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, que fez uma magnífica exposição de ideias para melhorar a apropriação e a utilização do crédito acumulado de ICMS. Nesse debate, eu procurei focar na questão contábil desse ativo e trago aqui os principais pontos que eu levei para discussão. Você vai perceber que o texto não possui respostas, apenas questões, que podem ser inquietantes, mas que considero importantes e que precisam continuar sendo discutidas.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que há pelo menos três ativos relacionados com ICMS. O primeiro é o Saldo Credor de ICMS, que grosseiramente podemos entender como o saldo temporário de ICMS que provavelmente será compensado com ICMS a pagar no futuro. Esse é aquele saldo que fica no ativo em função de se ter efetuado mais compras do que vendas em determinado mês, em função de sazonalidade, por exemplo. O segundo é o Crédito Acumulado de ICMS, que também grosseiramente pode ser entendido como o saldo que se acumula sistematicamente em função da ocorrência de alíquotas efetivas diferentes na entrada e na saída por meio de exportação, redução de alíquota ou de base de cálculo, por exemplo. O terceiro ativo é o de ICMS Diferido, que é o ativo gerado temporariamente em função de diferenças nas normas contábeis IFRS/CPC e na legislação tributária, como é o caso do ajuste a valor presente da receita contábil, que faz com que o ICMS sobre a receita no resultado tenha que ser ajustado, com contrapartida no ativo, para que possa ser alocado ao longo do período em que a receita de juros na venda a prazo seja reconhecida. Neste texto, vamos focar apenas no segundo tipo de ativo.

Imagine a seguinte situação hipotética: a empresa possui isenção na saída de produtos, cujos insumos são tributados a 18%. Na aquisição dos insumos, ela irá debitar ICMS a Recuperar no Ativo Circulante, separando-o do valor do Estoque. Naturalmente, como não há ICMS na saída, haverá acúmulo de créditos de ICMS de maneira sistemática. Perceba que este ativo vai crescendo à medida que as operações ocorram e que é possível que a empresa faça ou não faça o pedido de apropriação do crédito acumulado. Aí começam os problemas. Caso a empresa faça o pedido de apropriação, o valor correspondente ao pedido deve ser segregado em outra conta? O montante que ainda não tem pedido de apropriação deve ter qual tratamento?

Vamos tratar primeiramente do montante com o pedido de apropriação do crédito acumulado já realizado. A sua segregação em outra conta está relacionada ao processo de reconhecimento do ativo. Quais devem ser os critérios para reconhecimento deste ativo? O reconhecimento deve ocorrer no momento em que a empresa realiza o pedido de apropriação ou apenas no momento em que obtém a autorização para utilização? Quando podemos considerar que este ativo passa a ter uma natureza diferente do ativo representado pelos créditos ordinários derivados da aquisição de insumos?

Essa discussão passa pela forma como os benefícios econômicos devem ocorrer, o que não facilita muito a nossa vida. O ativo de crédito acumulado de ICMS pode ser recuperado por meio da transferência a outro estabelecimento da mesma empresa ou de empresa interdependente, o que significa que seu benefício deve ocorrer pela liquidação de ICMS a pagar. Pode ser utilizado também para pagamento de fornecedor na aquisição de estoque e de imobilizado, o que significa que o benefício econômico deve ocorrer por meio de permuta com estoque de fornecedor ou pela liquidação de passivo já existente com fornecedor. Em casos excepcionais e mediante autorização do Secretário da Fazenda, o crédito pode ser vendido, o que faz com que o benefício econômico seja uma entrada de caixa. Há outras formas mais específicas de recuperação, mas que são semelhantes a esses. Perceba que a diversidade de formas de recuperação do ativo dificulta também a questão da sua mensuração. Se pode ser vendido ou permutado, é possível que a realidade seja mais bem representada por meio da avaliação a valor justo, mas a liquidação de passivos remete à avaliação a custo.

Essa característica de possuir diferentes possibilidades de obtenção de benefícios econômicos dificulta a atribuição de um tratamento contábil conforme as normas que existem atualmente. Se o crédito, em grande parte, foi adquirido do fornecedor juntamente com o insumo e poderá ser vendido ou permutado, é possível classificá-lo também como estoque? Eu sei que isso soa bem estranho, e realmente é, mas a definição de estoque no CPC 16 é: “ativos mantidos para venda no curso normal dos negócios (…)”. Fica a dúvida. Vamos para outra possibilidade: ativo financeiro. A definição, segundo o CPC 39, é: “qualquer ativo que seja (a) caixa; (b) instrumento patrimonial de outra entidade; (c) direito contratual: (i) de receber caixa ou outro ativo financeiro de outra entidade (…)”. Parece se encaixar no último item quando se fala em venda do crédito, mas perceba que a outra parte que tem a obrigação de pagar é o governo, e não a parte que irá comprar o crédito. Mais uma possibilidade: ativo fiscal diferido conforme o CPC 32. A definição é: “valor do tributo sobre o lucro recuperável em período futuro relacionado a diferenças temporárias dedutíveis, prejuízos fiscais e créditos fiscais”. Aí parece se encaixar melhor, porque o crédito acumulado de ICMS foi gerado em um mecanismo semelhante ao prejuízo ou crédito fiscal, como se as “receitas” fossem menores que as “despesas”. Porém, é preciso lembrar que a norma foi elaborada para tributos incidentes sobre o lucro…

Ok, parece que não temos uma norma em que o ativo de crédito acumulado de ICMS se encaixa perfeitamente. Aí você poderia dizer: nesse caso, usamos o CPC 00 Estrutura Conceitual e vida que segue… O problema é que a não existência de uma norma contábil específica pode trazer informação enganosa aos usuários e é por essa razão que todas as demais normas existem – senão, bastaria termos apenas o CPC 00.

Eu penso que a informação sobre o ICMS a Recuperar pode ser manipulada em diversos pontos, caso não haja tratamento específico. Vou dar alguns exemplos.

Voltando ao primeiro ponto, esse ativo pode conter créditos não apropriados, misturados aos créditos acumulados já autorizados pela Secretaria da Fazenda. Ao se misturarem, podem dar a impressão de que todos já foram autorizados e que não há uma parcela que ainda está sob julgamento do governo e, portanto, sob contingência.

Ao se misturarem, é possível que a posição de liquidez da entidade seja manipulada, pois créditos acumulados podem ser apresentados no ativo circulante, quando na verdade serão provavelmente recuperados no longo prazo. Como a apropriação do crédito acumulado de ICMS depende de um processo rigoroso de avaliação e autorização por parte do governo, os créditos acumulados ainda não apropriados provavelmente gerarão benefícios somente no longo prazo. Mesmo os créditos acumulados já autorizados podem gerar benefícios apenas no longo prazo, dadas as restrições para sua utilização. A manutenção desses ativos no circulante prejudica a avaliação de liquidez e risco de falência por parte dos usuários.

Se a intenção da entidade é utilizar o crédito acumulado por meio de pagamento ou permuta com fornecedores, é possível que haja deságio na negociação. Se não houver princípio específico para a situação, é provável que o gestor deixe para reconhecer a perda com o deságio apenas para o momento da transação, mesmo que haja informação suficiente para determinar o montante do deságio antes de a transação ocorrer. Se a intenção é vender, eventuais perdas com deságio também podem ocorrer, mas serem reconhecidas apenas quando a transação de venda ocorrer, mesmo que haja um mercado ativo de venda de créditos acumulados.

Em relação aos créditos acumulados ainda sem pedido de apropriação junto ao governo, é possível que a entidade mantenha saldos no balanço mesmo depois de expirados, algumas vezes em função da dificuldade de controle dos prazos de expiração, mas em outras com a pura intenção de não os baixar para o resultado para evitar a divulgação de perdas.

Como há uma série de restrições para a utilização dos créditos acumulados de ICMS, a empresa pode ter dificuldade para utilizar os créditos já apropriados. Mesmo que eles não expirem conforme a legislação atual, é possível que a empresa não consiga meios de utilizá-los em sua totalidade. Há a dificuldade de se avaliar a necessidade de se fazer teste de impairment, porque isso depende da ocorrência de um evento que indique essa necessidade, mas qual seria este evento, neste caso?

Em suma, parece haver a necessidade de uma normatização específica para os créditos acumulados de ICMS, isso sem falar na necessidade de termos princípios contábeis específicos para tratar do ICMS Diferido e das particularidades dos demais tributos sobre valor agregado. Vários outros países possuem tributação sobre o valor agregado e parece que as particularidades da legislação brasileira trazem problemas relevantes que podem levar a um tratamento contábil mais adequado para o resto do mundo.

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